Nunca o cinzento a seduziu, embora de forma displicente reparasse nos vincos ainda quentes que dividiam a perna de tecido com perícia. Como se se tratasse apenas de uma auto estrada, no pior dos casos, de uma rua sem saída, bloqueada por um pé inerte. Mas é verdade, nunca o cinzento a seduziu, nem tão pouco a forma geométricamente perfeita da gravata. Ainda que pudesse ser de seda vermelha, macia, escorregadia. Nas suas longas horas de trabalho disciplinado, deixava muitas vezes que a imaginação fugisse e, sem que ninguém desse conta, imaginava aquele vermelho rubro como um grito que o cinzento, tédio imposto, ainda conseguia libertar.
Outras vezes, imaginava o sub-chefe mangas de alpaca, severo e controlador dos minutos na casa de banho, vestido de ceroulas.
Amareladas, daquele tecido cardado e quente, que sabia ser usado pelos homens. Assim observara em pequena, na Casa Africana, onde tantas vezes tinha ido, de mão dada com a mãe.
Dessa forma, imaginando-o de ceroulas, ao sair, era sempre com um sorriso, que lhe dizia, boa tarde, sr.neves, até amanhã se deus quiser. E ele, surpreso com o sorriso, sorria também.
Nunca o cinzento a seduziu, mas trabalhava disciplinada e criteriosamente, em paz com as suas fugas de imaginação, nunca imaginadas por ninguém, as horas passando no grande relógio de parede, anos a fio. O que a seduzia mesmo, verdade seja dita, era o vento frio da tarde, quase noite, quando saía, até amanhã sr. neves, até amanhã, que se faz tarde e eu quero é o vento forte na cara, o cabelo despenteado, o cheiro do rio a perfurar a disciplina das narinas, eu quero é ver o rio, acender um cigarro, esquecer os sérios e cumpridores e viver até amanhã, se deus quiser.
Nunca o cinzento a seduziu é bem verdade e nunca o vermelho geométricamente perfeito da gravata, ainda que de seda escorregadia, a conseguiu demover do vento na cara.
Onde teria chegado, se assim não fosse?