domingo, janeiro 31, 2010

re.flec.tir













1-Transitiva, a água reproduz a imagem.




2-Intransitivo, o pombo, muda de direcção seguindo por caminho contrário ao primeiro.




3-Reflexo, da fome?

é por decreto proibido

dar milho aos pombos.

é por decreto proibido

dar esperança aos homens

velhos

que sobreviveram à fome

- à fome.

é proibido

-terminantemente-

proibido dar esperança

às mulheres

- velhas-

que resistiram aos homens

-aos homens.

Milho e esperança alimentam o vôo.

-querem-nos por decreto, aqui.

pequenas sombrias, pequenos na sombra.





domingo, janeiro 24, 2010

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Crescidos, adultos, vivenciados e de corpo presente através do tempo, muitas foram decerto as casas que nos marcaram e se deixaram tatuar por nós, pilares testemunhais de um ciclo que crescendo, se encerrou.
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Contudo, não foi alguma dessas casas (guardadas em mim), que teve reconhecimento esta semana. A noticia chegou-me através do Facebook: no Chipre, essa ilha paradisíaca parcial e ilegalmente ocupada pela Turquia desde 1974, pela primeira vez, um cipriota leva a tribunal o casal que edificou uma casa nos seus terrenos, entretanto usurpados e vendidos, também ilegalmente, por um ocupante. Parece-nos, a nós, portugueses e a viver num estado de direito, acto legitimo e até banal, decerto. Contudo, só quem lá vive ou quem passou por lá de olhos e alma abertos aos arames farpados e à mágoa dos olhos, percebe bem toda a importância de que para os cipriotas se reveste esta noticia: pela primeira vez, um homem põe em causa a legitimidade dos ocupantes e dos que, sem escrúpulos, se aproveitam desta situação. Pela primeira vez um homem ganha voz para dizer não. E ganha. Um simples homem, proprietário de uns torrões de terra leva também, ainda que indirectamente a Turquia a julgamento. E ganha.
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Ganha o Sr.Apostolides corpo de herói, quase um helénico Che Guevara, perante o desfecho.

E contudo, ainda que sem o conhecer, adivinho-lhe a memória de dor sobre a qual construiu
a força de que faz a sua voz...










Por isso, impossível não me lembrar da casa, quando ao conhecer página a página a "Hierofania dos Dedos" de Jorge Vicente, li este 13º poema:
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a casa é o último
vestígio do pranto:
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as suas paredes - sentinelas
de memória - adormecem
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num abraço o rebordo
dos olhos


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terça-feira, janeiro 12, 2010

"o rapaz que lhe desenhava bonecas"



Foi aos primeiros dias do ano que ela se interrogou sobre o que levava tantas pessoas a dizerem não, a continuarem a dizerem não, à mudança que era lógica, a seus olhos, acontecer. Não percebendo esse mar de gente estranha, mudou a formulação da pergunta: porque é que para ela, mulher de quase cinquenta anos, hetero e sem qualquer registo de crise de identidade sexual, duas filhas e uma neta, crente qb, é tão sem pecado e natural a escolha pela igualdade de direitos humanos? sabendo que a resposta seria encontrada algures nos códigos emocionais armazenados na memória, dispôs-se ao mergulho introspectivo.

Há muito dizia que desde sempre tivera amigos com outras tendências sexuais e que essas escolhas em nada interferiam nas relações de amizade que guardava, é um facto. Mas o "sempre" da constatação anterior levava-a apenas ao tempo dos seus dezasseis anos, quando conheceu o Fernando, um gay assumidissimo e sem complexos, liberto de traumas -alguma vez os tivera?-, nascido e criado na Bica, com quem trabalhou meia duzia de anos e de quem guardava amistosas recordadações, com excepção dos momentos em que dava com ele a olhar para o mesmo rapaz. Pisava-o e dizia-lhe travessa, eu vi primeiro. Ao que ele sempre lhe respondia a rir, com aquele ar doce tão seu, mas só para os escolhidos: não importa quem viu primeiro, importa quem é correspondido. E ela nos seus dezasseis anos, sustinha a respiração: quem iria ser correspondido no olhar? (sorriso....)

Portanto, a resposta ao porquê das suas escolhas actuais não poderia residir no Fernando, bem recebido desde logo por ela. Não fora o Fernando a fazê-la pensar, mas se não fora ele, quem teria tido então, antes dos dezasseis, tão importante papel?

A resposta surgiu-lhe alguns dias depois, a propósiito de uma outra pergunta, onde teria eu ido buscar os seios fartos, as ancas largas e as cinturas de vespa das minhas primeiras bonecas?



Ambas as respostas residiam no rapaz que lhe desenhava bonecas.



O Nini vivia no prédio em frente do seu e era o rapaz mais diferente que ela nos seus pequenos seis anos de vida conhecera. O Nini era muito alto e magro, de cabelos negros encaracolados e de sorriso pronto, falava com toda a gente. Filho de pai italiano e mãe portuguesa, era o segundo de cinco irmãos, todos diferentes. O Nini não jogava à bola na rua com os outros rapazes, mas ao contrário deles, muitas vezes parava no parapeito da janela, onde ela, gorducha, ao fim das tardes de verão gostava de estar a desenhar. Foi assim que se conheceram. Ela com seis e ele com doze. Um dia ele perguntou-lhe, gostas muito de fazer bonecas não gostas? e ela dizendo-lhe que sim, perguntou-lhe queres desenhar também? Ele pegando no lápis, desenhou-lhe a boneca mais sensual -embora nesse tempo essa palavra não existisse no seu pequeno vocabulário- que ela alguma vez tinha visto. Desenhou-a de frente e desenhou-a de lado, perante o espanto dela que nunca vira tamanha facilidade e rapidez para chegar à perfeição. Depois desses "moldes" desenhados pelo seu mais recente amigo, nunca mais as suas bonecas foram as mesmas, sofrendo a metamorfose de uma qualquer operação plástica.Todos os patinhos feios eram agora transformados em cisnes, em poucos segundos.

Durante os anos seguintes, o Nini cresceu muito. Era cada vez mais alto e mais magro, vestia calças justissimas que lhe acentuavam o corpo, camisas largas que ela só via nos filmes de domingo à tarde, quando ia ao cinema com o pai. O Nini que estudava no Charles Lepierre, falava quatro línguas estrangeiras com a mesma facilidade com que no passado lhe desenhara as primeiras bonecas perfeitas. Ao mesmo tempo, na rua, começaram a ouvir-se os primeiros rumores trocistas sobre ele. Eram os outros rapazes a dizê-los, eram as colegas da escola e por fim, quando de mão dada com a mãe ia ao mercado, ouvia-os também à socapa, da boca das vizinhas. Ela não gostava daquela troça, daquele diz que diz de quem nada sabe, não gostava que lhe chamassem nomes que ela não conhecia, que falassem dele assim meio às escondidas.

Deveria ter 10 ou 11 anos quando percebeu o que queriam dizer e percebeu que, fosse o que fosse o Nini, ela o adorava e nada poderia mudar essa adoração mútua.





De facto, percebe hoje, da vivência diária ao longo de dez anos com o seu amigo Nini e do seu papel de diferente numa sociedade cinzenta e mesquinha, ela retirou aprendizagens que a levaram às escolhas actuais, a ser o ser livre que hoje é.





_...morderam-se decerto muitas línguas, quando a meio da década de 80 o Nini, então a residir na Suiça e comissário de bordo, regressou a Portugal para umas curtas férias, casado e com um par de filhas gémeas lindissimas nos braços. Feliz e diferente, como sempre o conheceramos, andou de porta em porta a cumprimentar os vizinhos que deixara naquela rua, estreita de mais, mesmo para o seu corpo magro.







sábado, janeiro 09, 2010




Era uma vez num país chamado Itália um futebolista italiano tratado por "preto de merda", anúncios de imobiliário que estabelecem "nem animais, nem estrangeiros", imigrantes agredidos na noite de Ano Novo: os comportamentos xenófobos têm-se banalizado em Itália, e alguns evocam mesmo um "racismo institucional".
[já a Michelangelo cinco séculos antes,
fora dado a conhecer o mistério da amargura,
da perda de fé na pátria]

domingo, janeiro 03, 2010

Neste ano europeu de luta pela erradicação da pobreza e exclusão social, de muitos "licores digestivos", intuio, vamos precisar...