Como um acto fora de peça, é o que é.
Ele estava deitado...
-ele, deitado?
Repito, ele estava deitado, numa breve pausa ao frenesim de que parecia possuído há dias.
-não escrevas.
escrevo, digo, deito fora, sei lá , respondeu ela.
Tinha os braços abertos, flectidos, e sob a cabeça cruzavam-se os dedos.
Tudo era bucólico, o azul do céu, os verdes, as pedras, o riacho...
talvez por isso, sentiu que o seu corpo, tão demasiado corpo, não cabia na paisagem.
-um corpo fora da moldura? não escrevas.
Fingiu não ouvir, não ouviu de todo; olhou para o tecto sem realmente o ver e, com voz despida de emoção, soletrou: no céu voavam pequenas e diáfanas nuvens de algodão.
(abanou as pernas como se imobilidade das mesmas a estivesse a incomodar).
O chão pintado de verde pela mão da natureza e as pedras, brancas, polidas pela neve recentemente derretida. Só o corpo dele, parecia não caber no quadro.
-chocava?
não era chocar, era como se aquele corpo de homem...
-perfeito, lembras-te?
...não fosse possível. Não fosse real nem de enquadramento possível.
Demasiado carnal, musculado, tenso, encorpado.
-e ela não dormia...
Ela raramente dormia. Não em viagem quando os olhos se recusavam a olhar para dentro na fome do cenário perfeito. Entretinha-se, quieta, com o telemóvel no silêncio, a enviar por sms o que os seus olhos traduziam no peito. Por isso viu a chegada do cavalo negro, luzidio. Tão irreal quanto o corpo do homem deitado a seu lado, adormecido.
Riu-se sózinha como se a loucura pudesse ser colectiva: coração a bater perante o corpo do cavalo preto recortado no céu azul -demasiado musculado para ser alado, como de resto, o do homem.
- não o acorda?
não, não, não, teme acordá-lo. Teme que acorde inquieto.Com passos cuidadosos procura na mochila a máquina fotográfica dele e fotografa o cavalo recortado no cimo da colina...
-os eternos álbuns de memórias.
de memórias, de paisagens, de pensamentos vagamente estranhos, descoordenados, caóticos: dois corpos fora de perspectiva.
-E o dela?
quando ela toma consciência do seu corpo e reconhece o número ímpar de corpos pensa que um cavalo branco virá. Ri-se do surrealismo dos seus próprios pensamentosi. Mas o cavalo branco é dentro dela uma certeza tão acabada que duvida de si mesma.
-porquê um cavalo branco? simbologia de algo que não quer traduzir em palavras?
o bem e o mal, a bondade e a crueldade, os antagonismos sempre presentes no ser humano, a complexidade do ser, essas tretas queres tu dizer?
-ela é que sabe.
ela não sabe. Não sabe ainda nada, naquele momento.ela apenas intui, inventa, imagina, projecta.O clic contínuo da máquina fotográfica acorda o homem.
Parece sereno, depois das horas de descanso. Beijam-se.
Ela aponta-lhe o cavalo e diz-lhe, espera por um outro que virá. Branco.
Ele ri-se. Grande imagem. Estou tão bem. Lancham com os pés dentro da água fresca do riacho, devagar como se qualquer movimento mais brusco os fizesse sair daquele enquadramento agora perfeito, de corpo e espirito. Foi quando ambos comiam pessegos de polpa madura e doce que o cavalo branco surgiu lentamente no horizonte, caminhando em direcção à colina onde o outro permanecia. Ele deixou cair no rio, o pedaço de pessego, olhando para ela atónito.
Ela amedrontou--se perante a materialização do seu próprio vaticinio.
A clarividência.
-como se fosse possível.
como se fosse possível, repete ela, como se fosse possivel o verdadeiro encontro entre ambos.
-não se encontraram?
Não. O cavalo branco nunca conseguiu transpor a pequena falésia escarpada de que era feita a colina. O cavalo negro, azul de tão negro, nunca descobriu como descê-la. Ela não esperava este fim, quando imaginou a chegada de um segundo cavalo. Ficaram olhando-se, relinchando e abanando as crinas, cada um no seu mundo, cada um no seu contexto, cada um no seu plano, sem nunca se encontrarem, tocarem, sem nunca conhecerem a perspectiva contrária, sem nunca perceberem o sentido da visão do outro. Em planos opostos. A atracção dos opostos era visível pelos sinais fisicos. Um contra luz qualquer ao entardecer (ela agora desenhava circunferências com o pé direito no ar, incomodada deveras pela imobilidade dos membros, dando pequenos estalos) fazia daquele quadro um acto fora da peça que ela imaginara. Não haveria um final feliz.
-porque é que essa imagem não te sai da cabeça?
porque é vulgar: é o retrato minimizado do mundo.
Há 10 anos
33 comentários:
Um texto sublime!
Ler-te é um puro fascinio!
Beijos
AL
Clap clap clap. Não, não é o trote dos cavalos. Sou eu a bater palmas ao texto. Encantatório. O preto e o branco no desafio e no eterno desencontro. Muito interessante aquela segunda voz a dar consistência ao discurso. Venham mais destes.
Beijinho.
Só ou será que excelsamente, senti(r) o perfeito de "ir além de...e rodar.. e voltar", ao ler este teu texto.
Parabéns, Arabica... o belo emociona
que delícia de texto.
parabéns!
beij
Cena de cinema independente/poético .
No final do ato - o binário, gerador da sociedade e das leis.
Mundo dual.
Nada se encontra mesmo...e se e quando se encontra é ilusão ou karma.
Tem mais nas entrelinhas, você esteve iluminada ao escrever o texto.
1 abraço.
fantástica analogia!
depois disto vou tomar uma grande chávena de chá. queres?
preciso de qualquer coisa concreta que me incendeie a garganta e me agarre.
beijo
arábica, eu rendi-me a este texto. e ainda bem que não publicaste nenhuma imagem a ele associada.
um abraço.
... que pena não haver aqui uma imagem! que eu adoro ver cavalos castanhos a contracenarem com cavalos ruços e homens a tentarem subir escarpas e mulheres a descerem ravinas.
Com o post dos pombos, foi o que se viu: começou com um e acabou com dúzias deles! Este, que bem precisado estava de se toparem os intérpretes em cima do palco, nikles! Não há fartura que não dê em fome, é o que é.
Fizeste um brilharete
c´o texto-representação
mas o preço do bilhete
cortou-me a respiração.
Beijos e sorrisos surrealistas.
"é o retrato minimizado do mundo" : LINDO!
grandes beijinhos, arabica
jorge
p.s.
e obrigado pelo comentário
"O cavalo branco nunca conseguiu transpor a pequena falésia escarpada de que era feita a colina. O cavalo negro, azul de tão negro, nunca descobriu como descê-la."
Há a vontade, a ousadia...
Um abraço apertado
pois não, arabica.
e que falta nos faz descodificar as sombras
a prevenir retratos
___ marcamos encontro ao final de uma tarde fria de domingo.
uma chávena de chá e um sorriso e afasta-se a escassez da luz.
um beijo
Que maravilha de texto!!!
Fiquei a pensar... nas verdades aqui escritas...
Um beijo.
Ainda bem que o texto não fala
em cavalos cinzentos
Belo texto
um retrato que não sei porquê
já sonhei
em azul
Bjs muitos
... e por que os desencontros se sucedem, senão para fazer-nos ansiar cada vez mais pelos encontros? :) Boa semana, amiga!
belissimas palavras. como cavalos de fogo (negro e branco) à desfilada...
prodigiosa escrita. a tua
beijo
Prosa, que é poesia, de metáforas que enriqueceriam a estrofe, mas que deixaste assim, tudo tão belo.
Narras com uma viveza que cria o desejo de saber que é o que passa, e passou!
Um forte abraço, que não pude dar-te
A falésia não se move nem se posiciona. O baixo e o cima depende de se subir ou se descer e nem sempre as trajectórias coincidem. Os corpos musculados são, às vezes, demasiado ostensivos e os cavalos têm o hábito de relinchar. Uns a preto, outros a branco, os primeiros meio-tom abaixo ou meio-tom acima, não porque desçam ou subam mas porque é uma convenção como a que vemos nos pianos. Todas estas razões podem ser invocadas para não deixar levar as pernas à imobilidade. Eterno desencontro? Duas pernas nunca se encontram!
... iremos como cavalos loucos... E, apesar desse desiderato, há encontros que parecem impossíveis ou, verifcando-se, não são bem sucedidos...
A experiência e as emoções ensinam-nos que jamais se deve desistir.
Os nossos desígnios, uma vez conhecidos, devem ser satisfeitos...
Para que nos sintamos equilibrados, confortáveis, lutadores...
Saudações
gosto muito de cavalos. são animais que desde sempre me fizeram ter a ideia de que não somos nós os melhores seres sobre a terra. escreves cada vez melhor, querida arabica. um grande beijinho.
Há contudo
um gesto impaciente da pintora
que pinta ainda - e também - um cenário
inteiro. De vida. De seguir em frente.
Bj
Soberbo.
...mas, mais que a atração dos opostos, julgo ser o desejo e a necessidade de descobrir intresses comuns que os atrai. Na verdade, se nada houver de comum entre os dois, mais tarde ou mais cedo, irão afastar-se.
Não houve um final feliz mas houve uma bela história que me transportou para um lugar cheio de magia...
Foi bom para contrabalançar com estes dias cinzentos que nunca mais terminam!
Abraço
mas eles deviam fazer tudo por tudo para se encontrar...
não há falésia que deva separar..
ou há...
ou a tela era pequena para os dois...
é isso...
abrazo serrano (depois falo da viagem obrigado pelo carinho)
É o texto de uma pintora, é um quadro de quem ama as palavras.É a possibilidade de desencontro absoluto, de solidão inevitável, de queda no abismo, transformados em história de encantar...
Puro cinema!
pintaste em traços largos! Parabéns!
Arabica,
Não tenho nada a dizer, não acho necessário. Conseguiste dizer tudo, e não é nada fácil.
Parabéns!
Um abraço.
excelente texto.obrigado e...encontrei aqui muitos amigos meus.. obrigado. beijinho
Gostei muito Arábica.
Beijinho
:))
bom dia!tem um bilhete postal na sua caixa de correio.
do jung da teoria a todos
os
práticos
e despráticos arquétipos
do
quotidiano
na água a imagem
reflectida
convexa encostada ao
corpo
redondo e tenso de
sentir
ir
ir
i r
~
Deliciada com este texto.
Ainda acredito em finais felizes, em encontros.
Achas mesmo que esta imagem, de um final não feliz, é mesmo a mais vulgar?
(Um final não feliz, não é um final, é uma continuação, desde que não e desista de perseguir o sonho.)
Em planos opostos se paralelos, não há encontros, mas também não é suposto haver, são mundos diferentes, paralelos, em termos espacias...e de tempo.
Já tinha saudades de te ler :-)
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