Nunca o cinzento a seduziu, embora de forma displicente reparasse nos vincos ainda quentes que dividiam a perna de tecido com perícia. Como se se tratasse apenas de uma auto estrada, no pior dos casos, de uma rua sem saída, bloqueada por um pé inerte. Mas é verdade, nunca o cinzento a seduziu, nem tão pouco a forma geométricamente perfeita da gravata. Ainda que pudesse ser de seda vermelha, macia, escorregadia. Nas suas longas horas de trabalho disciplinado, deixava muitas vezes que a imaginação fugisse e, sem que ninguém desse conta, imaginava aquele vermelho rubro como um grito que o cinzento, tédio imposto, ainda conseguia libertar.
Outras vezes, imaginava o sub-chefe mangas de alpaca, severo e controlador dos minutos na casa de banho, vestido de ceroulas.
Amareladas, daquele tecido cardado e quente, que sabia ser usado pelos homens. Assim observara em pequena, na Casa Africana, onde tantas vezes tinha ido, de mão dada com a mãe.
Dessa forma, imaginando-o de ceroulas, ao sair, era sempre com um sorriso, que lhe dizia, boa tarde, sr.neves, até amanhã se deus quiser. E ele, surpreso com o sorriso, sorria também.
Nunca o cinzento a seduziu, mas trabalhava disciplinada e criteriosamente, em paz com as suas fugas de imaginação, nunca imaginadas por ninguém, as horas passando no grande relógio de parede, anos a fio. O que a seduzia mesmo, verdade seja dita, era o vento frio da tarde, quase noite, quando saía, até amanhã sr. neves, até amanhã, que se faz tarde e eu quero é o vento forte na cara, o cabelo despenteado, o cheiro do rio a perfurar a disciplina das narinas, eu quero é ver o rio, acender um cigarro, esquecer os sérios e cumpridores e viver até amanhã, se deus quiser.
Nunca o cinzento a seduziu é bem verdade e nunca o vermelho geométricamente perfeito da gravata, ainda que de seda escorregadia, a conseguiu demover do vento na cara.
Onde teria chegado, se assim não fosse?
46 comentários:
O "cinzento" é a metáfora da carreira de sucesso, fundamentada pela ambição desmedida, alicerçada pelo esquecimento de toda a vida ao nosso redor.
Para que conste. :))
Beijos.
Excelente, Vanda. Excelente. A preferência do vento na cara, a recusa do cinzento. As ceroulas de pano áspero a desfigurar a sedosa gravata. Até amanhã, se Deus quiser. Olha se não tivesse sido assim! Ainda bem que continuas a gostar do vento do rio contra a cara. Até amanhã, Vanda.
Muito bom! Cores dizem muito.
Gostei muito da imagem. :)
Beijos.
Tinhas chegado a sra. ministra, 'tá visto!! Ou, no mínimo, a chefe de departamento!!
Mas como não há cinzento que consiga cortar as asas da imaginação...
(I wish I could go traveling again)
Excelente texto, amiga:))
Bom dia, às três meninas :)))
aiai :))
Eu acredito que tinha chegado a um cinzento mais escuro, essa é que é a verdade, verdadinha :))
"Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida...."
Cinzento, não...mesmo a gravatita sendo vermelha e de seda macia não deixa de ser geométrica!
Ahhh...acho que o meu chefe usa também ceroulas amareladas...é cá um felling!!!!
meu deus que tu és tão linda
assim
sem gravata
sem paredes
correndo como um rio
não ao fim do dia
mas
ao fim de cada hora
de cada minuto
livre
à procura das aves e
dos peixes
[ like a river man
like a river woman ~
] cem memória s
cem agora s
sem relógio
sem cimento,,,
ABRAÇO ( abraçado
~
Magy :)) quase todos os chefes as usam :)) metafórica ou linearmente :))
Há que sonhar, há que sonhar.
:)
~pi
tu deixas me sem jeito sem gesto,
vamos apanhar peixes com redes de borboletas? :))
Chefes cinzentos, de cinzento vestidos!
Que cinzentismo!
Valha-nos o teu texto para nos rirmos do cinzento!
Abraço
Desfilam sempre pela manhã e ficam no gabinete, fora de horas. Trabalham o futuro deles, também dessa cor - cor de acinzentado áspero. Mesmo sendo Armani's.
Os pássaros? esses voam no vento de mil formas e cores.
Bjinho
Rosa, Bettips :)
voar, rir, encontrar o caricato :)
besos
Arabica,
Olha, também conheces o Neves????
Bolas, este mundo é realmente pequeno!!! :)))))
Belo pedaço de prosa, e o Neves ficou muito bem na foto!
Abraço.
e nao é que é verdade
manga de alpaca e tal coisa
e cinza rato...
ainda te lembras do preto da casa africana?
naaaaaaaaaaaaaaaaa
demasiado jovem para isso
beijinhos
tambem li os de baixo
sim srª
gostei :)))))
em pensamento?
:))))))))
o vnto na cara, sim! Explêndido!
... não pretendendo pessoalizar este comentário não quero deixar de lavrar o meu protesto pela forma como são tratados os Neves deste país e os homens que usam ceroulas. Isto cheira-me a pessoal próximo de quem assentava arraiais na Leitaria Garrett e ao cabecilha alentejano da boina preta.
Neves das Ceroulas
e o seu assistente
Preto da Casa Africana.
Alien
-bem me parecia que tu tb o conhecias :)))
O mundo é mesmo uma ervilha :))
C (enhor) do Observatory
e não é que me lembro mesmo?
Nascida em 60, todas as semanas no passeio religiosamente cumprido de mão dada com a mãe pela baixa lisboeta. :))
As primeiras escadas rolantes da minha vida, suponho.
E o Grandela? Os do Chiado? Enormes, com suas dezenas de bancas, onde os tecidos escorregavam, misturando-se nos tons...a minha mão gorducha seguia devagarinho, experimentando as texturas diferentes...
olhos presos nas flores,nas riscas e quadradinhos, nas delicadas sedas...
:)))
Teresa,
bem me parecia que tb fazias a apologia do vento :))
empatias :))
Senhor das ceroulas de neve, :))
és bem capaz de estar certo! :))
Ah a nossa velha Leitaria Garrett!
Tantas revoluções se fizeram nas esquinas em declive :))
Sim... o carreirismo é execrável!
Partilho desse ódio de estimação.
O vento na casa, o vento nas palavras... estas tuas palavras têm agarradas a brisa das férias e o perfume da tranquilidade.
mfc...execrável mesmo. bahhhhhhhh :))
Laura
vento sereno sem remoinhos :)
hum... e eu que vinha dizer que é uma bela combinação colorística vermelho/cinzento.
beijos
Melhor brincar com os vermelhos de Sol e de pétalas caídas em algum lugar.
Melhor não estar mesmo nos cinzentos tempos de ansiar por sucesso.
Melhor o vento na cara.
Melhor o despojamento, muito melhor!
Sabes o que escreves!
apetece-me um grande sorriso :))))
vá lá saber-se o porquê.
Gostei deveras,
demoradamente
.
Boa noite senhora de vento.
tu (posso dizer "tu"?), tu é que sabes.
e o Cesariny também sabia...
e fui mais abaixo: fumar fantasmas será certamente menos saudával e não saberá tão bem como um bom cigarro (já não fumo mas ainda me lembro).
(e uma caneca de bom café
arábica?)
Arabica
Bom dia, bom final de semana.
Com muita luz.
Beijos.
Luisa,
até é, devido ao contraste.
Também gosto, metáforas à parte.
Bárbara,
o desapego permite-nos outros caminhos e outras fugas.
Maré :)))
sem (também) saber porquê, o teu comentário também me trouxe um sorriso :))
Os ventos vão e outros virão.
(digo eu)
:)
Trili,
o "tu" cai-me bem, fica-me bem ao tom da pele e ao despenteado habitual. Claro que sim :)
Cesariny, descoberto muitos anos depois do sr.neves, foi como uma janela aberta, repentinamente, pelo vento.
Não há fantasmas que lhe resistam.
Nem a uma caneca de bom café, qb robusta...qb arábica :)
Lita,
luz seja eu :)
obrigada, amiga.
Ainda bem que a sedução deste cinzento não teve efeito.
Em mim, tem repúdio.
E respondo: chegámos onde queríamos, por preferir o vento na cara, a liberdade de escolhas sem imposições, o salário menor apesar das mesmas responsabilidades...
Não perguntes até onde poderias ir...Vai, simplesmente, assim...Como só tu...
Bj
onde terias chegado? de certezinha que estavas prosperamente refastelada numa escala de cinzas!
mas do que eu gostei mesmo foi das ceroulas do sr. neves. a minha Humana aconselhou uma estratégia a uma jovem colega, nervosíssima por ir ter uma reunião com o director, e o homem era mesmo uma aventesma, um brutamontes, um verdadeiro cromo - e ainda por cima convencido de que era um exemplo a seguir por toda a gente. olhe, disse a Humana, quando estiverem reunidos e ele começar a falar consigo daquela maneira presunçosa que nós sabemos, imagine-o todo nu.acho que a miúda se viu aflita, durante a reunião, para não desatar a rir.
marradinhas e ronrons, arábica. e que o vento continue a gostar de te beijar o rosto.
Coitadinho do cinzento, quero eu dizer da cor, tão rica e poética e tão mal empregue em obedientes e servis seres mangas de alpaca e, já agora, em noivos institucionais nos meses de verão, assim como quem traja,dignamente, uma espécie de felicidade encomendada.
E, de "ceroilas", lembro-me de as ver, mas brancas após asseada e competitiva sabonária, nas aldeias da roupa branca em férias alentejanas. Que lindas e alvas ficavam aquelas pernas vazias de conteúdo estendidas ao sol...sobretudo as de um capataz que deveria pesar duzentos quilos, vitima das nossas especulações impuras, sim, nós, com os vícios de quem andava por Lisboa, onde, por ninguém se conhecer, reinava o "debochi, que sâ piores cus homêns,gaiatas dum cabrão,ai filha de lh´alma".
E há lá coisa mais reveladora das fragilidades teatrais que ver um presidente de concelho de administração com uns boxers com o Pato Donald...não se tivesse "abaixado" para apanhar a caneta e eu não tinha visto...ou seria cinta para a quebradura da Rua dos Fanqueiros?
Ay hija mía, qué mala vengo yo del mar y de mi Madrid...:))
Besos
vento na cara e espinha direita...
excelente.
beijo
Problema:
- Deditos da mão direita foram-se... deditos da mão esquerda quase esgotados.
Hipóteses:
- Vir aqui "n" vezes e o cinzento de pedra e cal
Conclusão:
- Necessidade de novo post para exercitar os neurónios
Resolução:
- Arabica escreve, vá!!!(farta de trivialidades e croquetes, eu...)
Beijos
PS- "Vê" um piscadela de olho no final do parêntesis.
Assim cantava a Amália
"assim devera eu sê-lo
se não fora
não querê-lo."
Alice, a fininha
AnaMar,
eu vou, eu tenho ido, eu tenho vindo, ziguezagueando, por vezes, outras, directa e rápidamente em linha recta! :)
Beijos
Gata Idun,
há tanto cromo que merece ser visto com um olhar raio-x :))
Sim, parece ser fórmula secreta para afastar pavor de audições, naquelas apresentações eficazes :))
Coisas de humanos, como os que constam nas histórias que a Humana vos consta :))
Marradinhas e ronrons para o vosso jardim, beijos para a Humana :)
Zizzie,
que divertida chegaste tu de Madrdi e do mar :)), mála???? não me parece de todo! :))Tarde divertida tambem, de imagens oferecidas por ti, entre ceroilas enfunadas pelo vento a administradores de boxers aos bonequinhos. ;))
Da rua dos fanqueiros, não me parece ter vindo :)) Há muito que perderam o prazer das lojas da baixa pombalina, gostando decerto mais, da zona alta, a lembrar uns eliseus nacionais :)) mas com ar internacional, Paris, Londres, Milão.
Besos, niña, bien venida :))
MagyMay,
"problema": deditos à volta de mil fios, em busca de um bordado que no futuro, olhando para trás, pareça acertado e sem malhas...
"problema": ando cansada. Fisicamente a precisar de carregar baterias. De tal forma, que ontem o jantar, foram croquetes encomendados no café da esquina.
"problema": tantas ideias se cruzam, tantas formas, tantos destinos, tantas aprendizagens, tantas reciclagens, que preciso, urgentemente, como os quintais de Lisboa, de uma "chuva" que liberte esta minha terra em sucalcos, da pressão. Para se soltar...
:)) pois assim sendo, continuemos com croquetes ;)) e café, em pequenas e grandes doses, até à chuva e aos dias de arrumações que se necessitam ;))
A dobrar, pois então.
Beijos
Ah grande fininha, Alice de seu nome, que também conhece a sina do fado :))
Herético,
mil perdões!!!!!
Mas a ideia de umas "ceroilas" enfunadas pelo vento desorganizou-me a escrita :))
Espinha direita contra as escolioses sociais :))
Beijos
e o vento foi aqui
e está aqui,
nos sorrisos do tejo.
um grande beijinho
jorge
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