sábado, fevereiro 20, 2010

Ilusão ou chocolate? é a pergunta que me assalta à noite, quando os adormecidos sonhos de uma diferente realidade sucumbem à certeza do corpo finito e do gesto limitado. Revestem-se de ilusão - na expectativa do tempo - até os corpos de candidatos a uma qualquer presidência. Não ficamos indiferentes, projectamos neles as nossas esperanças. Reveste-se de ilusão - utópica do sentir- a música que nos espanta, acabada de descobrir. Revestem-se de ilusão os rostos que se cruzam connosco, personagens quixotescas, nas redes sociais. Ilusão, digo bem. Parece existir uma maior empatia antes do conhecer. Depois, rápidamente, se evaporam no nevoeiro. Era ilusão o que os movia?Ficam os que, sábios -desiludidos?- não a buscam nem a procuram e nos vão encantando nas empatias reais do ser humano em descoberta.
Vivemos de pequenas a grandes ilusões.
A ilusão de um número. A ilusão de uma imagem. A ilusão de um status. A ilusão de uma viagem. A ilusão de uma cor. A ilusão. Conseguiremos viver sem ilusões? Conseguiremos sustentar a amargura de um esqueleto sem um doce, um chocolate?

Debato-me nesta questão sempre que no supermercado, com um gesto rápido e apararentemente supérfulo, ponho no carrinho das compras meia dúzia deles.

De quantas ilusões precisamos para não sucumbir ao forte peso do mundo e em situações extremas, ao tédio que a nós próprios inspiramos?



Qual o número mensal de ilusões que sustenta o nosso corpo?





Fotografia de Fernando Lemos (salvo erro, Alexandre O'Neill o retratado)

sábado, fevereiro 13, 2010

Como um acto fora de peça, é o que é.
Ele estava deitado...
-ele, deitado?
Repito, ele estava deitado, numa breve pausa ao frenesim de que parecia possuído há dias.
-não escrevas.
escrevo, digo, deito fora, sei lá , respondeu ela.
Tinha os braços abertos, flectidos, e sob a cabeça cruzavam-se os dedos.
Tudo era bucólico, o azul do céu, os verdes, as pedras, o riacho...
talvez por isso, sentiu que o seu corpo, tão demasiado corpo, não cabia na paisagem.
-um corpo fora da moldura? não escrevas.
Fingiu não ouvir, não ouviu de todo; olhou para o tecto sem realmente o ver e, com voz despida de emoção, soletrou: no céu voavam pequenas e diáfanas nuvens de algodão.
(abanou as pernas como se imobilidade das mesmas a estivesse a incomodar).
O chão pintado de verde pela mão da natureza e as pedras, brancas, polidas pela neve recentemente derretida. Só o corpo dele, parecia não caber no quadro.
-chocava?
não era chocar, era como se aquele corpo de homem...
-perfeito, lembras-te?
...não fosse possível. Não fosse real nem de enquadramento possível.
Demasiado carnal, musculado, tenso, encorpado.
-e ela não dormia...
Ela raramente dormia. Não em viagem quando os olhos se recusavam a olhar para dentro na fome do cenário perfeito. Entretinha-se, quieta, com o telemóvel no silêncio, a enviar por sms o que os seus olhos traduziam no peito. Por isso viu a chegada do cavalo negro, luzidio. Tão irreal quanto o corpo do homem deitado a seu lado, adormecido.
Riu-se sózinha como se a loucura pudesse ser colectiva: coração a bater perante o corpo do cavalo preto recortado no céu azul -demasiado musculado para ser alado, como de resto, o do homem.
- não o acorda?
não, não, não, teme acordá-lo. Teme que acorde inquieto.Com passos cuidadosos procura na mochila a máquina fotográfica dele e fotografa o cavalo recortado no cimo da colina...
-os eternos álbuns de memórias.
de memórias, de paisagens, de pensamentos vagamente estranhos, descoordenados, caóticos: dois corpos fora de perspectiva.
-E o dela?
quando ela toma consciência do seu corpo e reconhece o número ímpar de corpos pensa que um cavalo branco virá. Ri-se do surrealismo dos seus próprios pensamentosi. Mas o cavalo branco é dentro dela uma certeza tão acabada que duvida de si mesma.
-porquê um cavalo branco? simbologia de algo que não quer traduzir em palavras?
o bem e o mal, a bondade e a crueldade, os antagonismos sempre presentes no ser humano, a complexidade do ser, essas tretas queres tu dizer?
-ela é que sabe.
ela não sabe. Não sabe ainda nada, naquele momento.ela apenas intui, inventa, imagina, projecta.O clic contínuo da máquina fotográfica acorda o homem.
Parece sereno, depois das horas de descanso. Beijam-se.
Ela aponta-lhe o cavalo e diz-lhe, espera por um outro que virá. Branco.
Ele ri-se. Grande imagem. Estou tão bem. Lancham com os pés dentro da água fresca do riacho, devagar como se qualquer movimento mais brusco os fizesse sair daquele enquadramento agora perfeito, de corpo e espirito. Foi quando ambos comiam pessegos de polpa madura e doce que o cavalo branco surgiu lentamente no horizonte, caminhando em direcção à colina onde o outro permanecia. Ele deixou cair no rio, o pedaço de pessego, olhando para ela atónito.
Ela amedrontou--se perante a materialização do seu próprio vaticinio.
A clarividência.
-como se fosse possível.
como se fosse possível, repete ela, como se fosse possivel o verdadeiro encontro entre ambos.
-não se encontraram?
Não. O cavalo branco nunca conseguiu transpor a pequena falésia escarpada de que era feita a colina. O cavalo negro, azul de tão negro, nunca descobriu como descê-la. Ela não esperava este fim, quando imaginou a chegada de um segundo cavalo. Ficaram olhando-se, relinchando e abanando as crinas, cada um no seu mundo, cada um no seu contexto, cada um no seu plano, sem nunca se encontrarem, tocarem, sem nunca conhecerem a perspectiva contrária, sem nunca perceberem o sentido da visão do outro. Em planos opostos. A atracção dos opostos era visível pelos sinais fisicos. Um contra luz qualquer ao entardecer (ela agora desenhava circunferências com o pé direito no ar, incomodada deveras pela imobilidade dos membros, dando pequenos estalos) fazia daquele quadro um acto fora da peça que ela imaginara. Não haveria um final feliz.
-porque é que essa imagem não te sai da cabeça?
porque é vulgar: é o retrato minimizado do mundo.

terça-feira, fevereiro 09, 2010







...tem bem-vinda um livro grande


que ainda não sabe ler....