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Chegar a casa, soltar-se dos sacos de legumes e pão, descalçar-se, acender um cigarro,
ler os últimos comentários, passar mais uma vez os olhos pelas fotos das últimas edições,
ser feliz com pouco, em apêndice de nota bibliográfica e repentinamente, o bater de uma
velha história,
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com o pai às portas da morte e a mãe submetida à dor profunda,
a rapariga faltava às aulas de matemáica para se refugiar em galerias de arte.
Planava sobre o tempo da fuga, como quem descobre a luz depois de uma longa e transversal cegueira que a destruía dimensionalmente.
Sorrindo para as cores das telas, jurava que os vermelhos sangue lhe falavam de vida, lhe prometiam vida e que os verdes eram sucalcos de terra que nunca tragariam a mesma vida, nunca amargamente tragada, nunca visceralmente tragada, levada antes disso pelos anjos, azuis de asas entrecortadas pelo céu, delineadas pelo sonho, dos ocres em gritos mudos, que em si sentia, sem palavras ainda -no seu reduzido vocabulario verbal de dor, para os descrever como quem constroi uma composição, 50 minutos de tempo e depois a folha entregue à professora, aqui está a minha [dor]. E a professora olhando a página parca em palavras, diria mereces um 10, apenas um 10, esperava mais de ti. Ela não sabe da recusa da rapariga, na escrita do vocabulário de dor, fugindo pela cor das galerias de arte, pequenas, silenciosas, no quarteirão contínuo à folha em branco, à equação que se recusa a solucionar, da raiva dos números, tão racionalmente, simples, nús, sem crises existenciais.
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Acariciando as texturas das peças expostas, imagina acariciar a pele do pai prematuramente envelhecido de morte. Sabe que hoje ou amanhã, ele voará nas asas azuis da noite, da tela, da vida...Detém a mão, para lá do horário asséptico das visitas no hospital, para lá dos tubos, para lá dos balões de oxigénio, para lá das lágrimas que lhe saltam aos olhos, dos pretos que lhe vestem já a alma, das sombras dos anjos que se hão-de vestir de azul..
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Nunca perceberam se a rapariga era inconsciente, se apenas louca.
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