"...A mulher sai da casa pelo caminho das palavras e olha a árvore. O que está fora de si é mútuo do que está dentro de si. É esse o seu canto, a sua transparência, a sua premonição.
Aquela de quem não se diz "ela", mas "tu", volta a olhar a árvore - e o olhar com que a olha é uma escuta. Tu sabes que o mundo chega-nos através de um lapso na destruição, por intermédio de um nó no desfazer. Imaginas a realidade porque ela te pede que lhe restituas o que lhe tiraram. Distrais-te do tempo porque ele é como os cabelos que crescem e que caem. Deixas a carga porque o que pesa não tem fulgor nem medo. Tu caminhas no teu caminho, e as palavras são pedras quentes, aves subterrâneas, rios imersos, ramos curvados, rostos errantes, astros desiguais.
A mulher entra em casa pelo caminho dos animais, aquele onde eles são o inverso de um sonho mais distante. Andas com passo leve, assim são leves as folhas que o vento agita e não possui. A mulher deixa a sua pegada como se o chão fosse um mar de sombras áridas e árduas. Avanças sobre a terra, e ela é a tua morada, o teu leito, a raiz da tua felicidade, a corda que te prende ao movimento, a distância ao poder e ao desterro.
A mulher entra em casa, e o coração não se distingue dela. Entras em ti, e a luz faz-te passar pelo seu verso, deixa-te andar colada ao seu recuo. Passas e deixas para trás o que levas, porque essa é a boa lei para se viver sem nada, para se morrer com tudo.
A mulher está sentada na sua margem, na sua absorção, no seu entardecer. As suas mãos são múltiplas como tudo o que existe: heterónimas uma da outra, até ao infinito..."
José Manuel dos Santos
Há 10 anos
8 comentários:
A mulher é a terra, a fecundidade, o milagre do nascimento e o fruto que cresce.
Que texto bonito! Parabéns a quem o escreveu. Parabéns a ti que o escolheste.
"A mulher está sentada na sua margem...no seu entardecer."
Um beijo.
Belíssimas palavras. Um entendimento profundo, quase visceral do que a mulher é. Parabéns pela escolha, minha amiga. Beijos
mão
s de
shiva
(all over,
mão s,
~
Todo o texto é digno de elogio e inteiro por si mesmo, mas eu realçava dois apontamentos nele que me parecem o auge de dois sentidos encontrados, o da esperança e o de prioridades:
"Distrais-te do tempo porque ele é como os cabelos que crescem e que caem. Deixas a carga porque o que pesa não tem fulgor nem medo."
Todas carregamos cargas e pesos e somos o sacrificio em pessoa, quando o amor ou a vida se interpõem acima da nossa coluna vertebral ou afectiva, não é?
"Passas e deixas para trás o que levas, porque essa é a boa lei para se viver sem nada, para se morrer com tudo.
A mulher está sentada na sua margem, na sua absorção, no seu entardecer. As suas mãos são múltiplas como tudo o que existe: heterónimas uma da outra..."
Belo texto o do José.
Beijinho aos dois
Como terra mãe, fecunda e dá flor e fruto...
Volto mais logo.
Arabica,
Escolha excelente. Palavras decisivas. Este, deste-mo tu a conhecer.
Um abraço.
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